domingo, 27 de setembro de 2020

Depois do Casamento (Sorry, tem spoiler)

 




O que você acharia de, ao perder sua mãe, ganhar outra? E o que acharia de, ao perder esta, recuperar a primeira? Essa roda viva é o que vive Grace (Abby Quinn), no belíssimo After the Wedding (do diretor Bart Freundlich, 2019), remake de Efter Brylluppet, filme dinamarquês, de Susanne Bier (2006), sobre o qual escrevi uma postagem na época do lançamento (leia-a clicando aqui). O título é homônimo, mas a refilmagem adaptou alguns aspectos da história inicial, mantendo a essência dos personagens e da trama. 

A história começa na Índia, com a personagem Isabel, maravilhosamente interpretada por Michelle Williams, quem administra um orfanato em dificuldades financeiras. Ao receber uma proposta de ajuda econômica da empresária estadunidense Theresa (interpretada por Juliane Moore), precisa viajar a Nova Iorque para assinar papéis, e é quando a nossa história encontra o seu conflito.

Theresa condiciona Isabel a permanecer em Nova Iorque por mais tempo que o necessário para a assinatura dos papéis da doação, e a convida para o casamento da sua jovem filha, Grace. Durante a festa, Isabel descobre que o marido de Theresa é Oscar, seu amor do passado e para tornar um pouquinho mais dramáticas as coisas, Grace revela aos convidados (e aos espectadores) que Theresa é sua mãe adotiva. Nesse momento, Isabel se dá conta de que foi pega em uma armadilha do destino: a filha que tivera aos 18 anos, e que teria sido supostamente entregue em adoção por Oscar, na verdade havia sido criada por ele e acabava de se casar, ali, diante de seus olhos.

Isabel descobre a traição de Oscar e decide pedir-lhe respostas. Nós, espectadores, tal qual na versão dinamarquesa, nos damos conta de que Theresa teria reunido os dois, na tentativa de juntar as pontas da vida de Grace e também de preparar o terreno para quando ela morresse. Descobrimos, então, que Theresa tem uma doença em estágio terminal e que tanto Grace quantos os pequenos gêmeos de 8 anos precisam de uma mãe substituta. O cuidado e o amor de Theresa também se voltam para quem estará ao lado de Oscar, "jogando-o" nos braços de Isabel.

Não sou muito fã de ficar dando sinopses da história, me interessa analisar situações, entender conexões, fruir do que o filme me proporciona. Depois do casamento de Freundlich tem leveza, mas também intensidades. É uma proposta bem diferente do estilo do homônimo dinamarquês, mas no remake estadunidense encontramos a história sensível e bem contada, pronta para a nossa sessão.

As mães se substituem numa dança harmoniosa e triste: quando uma sai de cena, entra a outra. A filha sempre terá o amparo e o amor de uma delas, apesar de as duas coexistirem enquanto dura o filme, em todas as cenas em que negociam a permanência de Isabel em Nova Iorque. Isabel, mãe de dezenas de órfãos indianos, talvez tentasse encobrir a mãe ferida que precisou deixar a filha aos cuidados de outros, quando ainda era uma adolescente. Ela não tinha estrutura para cuidar de uma criança quando teve Grace. Mas agora a recupera, vinte e um anos depois, quando Grace já é uma mulher adulta, mas sabemos que o ser humano nunca é suficientemente maduro para abrir mão do amor materno...

Impossível não se encantar pelo belo figurino tão ao gosto das cores das especiarias indianas - do açafrão à canela -, com seus tons fortes e suas cores quentes e vibrantes. Impossível não perceber a maneira delicada como a história é contada.



Vejo que fiz uma análise muito mais densa do filme dinamarquês, mas hoje me sinto um pouco cansada, talvez eu volte depois para um post scriptum

O que posso dizer para finalizar, é que as coisas que realmente importam, os sentimentos fundamentais na vida do ser humano, esses estão presentes na história contada por Freundlich. Agradeço a delicadeza e a intensidade. 


Publicado originalmente no blog Torre de Capim Lilás, em 12/09/2020: http://torredecapimlilas.blogspot.com/2020/09/depois-do-casamento-sorry-tem-spoiler.html

Arnaud fait son 2ème film

                                                    


 

Com o título, no Brasil, de "Amor, Paris, Cinema", o diretor Arnaud Viard nos traz uma delícia de longa-metragem em que ele mesmo protagoniza uma história metalinguística: um diretor tenta escrever e dirigir o seu segundo longa. A história é leve e divertida, mas também conta com as pegadas melancólica, crítica, psicanalítica e poética do bom cinema francês. Ao lado de uma lindíssima Irène Jacob, Viard nos conta uma história criativa e que poderia ser vivida por qualquer ser humano que está perseguindo um sonho, como eu ou você.  

Arnaud é um homem de 45 anos que escreve roteiros, atua e dirige. Como ele mesmo se apresenta, "é diretor e ator". Atua para sobreviver, mas sua grande paixão é dirigir. Começa sua narrativa contando do bloqueio que teve ao realizar seu primeiro filme, em 2004. Se vamos assistir a uma história autobiográfica, não poderemos afirmar. Mas a criatividade artística e a potência sexual são dois motes para o deslanchar do nosso filme.

Arnaud tem dois sonhos: ter um filho e fazer o seu segundo filme. Como casal de meia idade, Chloe e Arnaud já têm alguma dificuldade para engravidar, o que termina por angustiá-los. Então começa a metanoia de Arnaud: separa-se de Chloe, começa a dar aulas num workshop de cinema, conhece Gabrielle, uma mulher muito mais jovem que ele. A tentativa de reconstruir a vida, de encontrar alguma vitalidade em meio aos desencontros - não havia conseguido que o produtor aceitasse o seu roteiro; não havia conseguido ter um filho com a mulher que amava -, o levam a se reinventar em meio à destruição dos sonhos. Sente-se feliz com a jovem Gabrielle, gosta das aulas e dos alunos, diverte-se bebendo da juventude que o rodeia. Mas sentimos que nem tudo está ali.

                                      Louise Coldefy e Arnaud Viard, em cena de Arnaud fait son 2ème film
 

As idas às sessões com o psicanlaista e as visitas à mãe hospitalizada começam a descortinar o íntimo de Arnaud. Nas cenas em que vai no trem - momento da espera, momento de instrospecção -, a ideia de perder a mãe e a busca pelo lugar de pai vão se somando no retrato que o filme constrói de nosso protagonista. Há cenas lindíssimas, como o diálogo tecido com a mãe, no trem que o leva de volta a Paris, depois de visitá-la no hospital. O diálogo é parte da despedida, antecipação do que está por vir. A mãe está em estágio terminal, sente dores, mas não quer dar trabalho aos filhos. Igualmente me encantou a cena da festa dada pelos alunos, em que Arnaud dança alegremente enquanto a música alegre é substituída pelo "Requiem in Paradisum", de Gabriel Fauré, e, lindamente, migramos do êxtase da festa para o êxtase da morte, momentos em que o sagrado toca os corpos humanos, momentos sublimes em que o amor ágape e a morte encontram morada. Arnaud recebe o telefonema que traz a notícia da morte da mãe, despede-se de Gabrielle, sai da festa e vai ao encontro de Chloe. Eros guia nossos amantes, nada mais erótico e íntimo que amar-se diante da morte da mãe. Arnaud pergunta-se e pergunta a Chloe por que eles não deram certo. Diante da perda da mãe, ele busca o consolo nos braços amorosos de Chloe, e, magicamente, nesse momento, concebem um filho. Fim e começo se enlaçam, um símbolo de que a vida é cíclica e infinita.

Irène Jacob, em cena de "Arnaud fait son 2ème film" (2015)

Arnaud finalmente consegue um produtor para o seu segundo filme e, justamente quando realiza esse sonho, Chloe o procura revelando que ele é pai, que ela está indo parir. A metáfora do nascimento, que tantas vezes é usada na arte, associa-se na concepção de uma obra e de um filho. Dois projetos que já se davam por fracassados, que haviam sido abandonados por Arnaud. Chamado pelo telefone, é convocado a assumir a realização do seu segundo filme e também o nascimento do seu filho. Sonhos que talvez já fossem inesperados. Sonhos que ele talvez já estivesse disposto a esquecer. Mas a Vida às vezes é assim, não é mesmo? Às vezes os sonhos correm atrás da gente. 💓


Irène Jacob foi um lindo reencontro, para mim. Meu primeiro momento com a senhorita Jacob foi nos clássicos "A Dupla Vida de Veronike" e "Rouge", ambos de Kieslowski. Reencontro-a madura, igualmente bela, com a mesma força da juventude. Arnaud Viard foi uma grata surpresa, já quero ver "Clara et moi", o seu primeiro filme. É muito bom ver diretores que entram na pele de seus protagonistas, como o fizeram Woody Allen, Nanni Moretti, entre outros. Inclusive, é muito boa a crítica escrita por Rodrigo Torres sobre "Amor, Cinema, Paris". Ele afirma que  o formato de "Arnaud fait son 2ème film" estaria baseado em "Caro Diario", do diretor italiano. "Caro Diario" é um filme de que gosto muito (amo as idas pelas ruas de Roma montado em uma vespa, eu me senti e me sentei na garupa de Moretti...), foi meu primeiro encontro com Moretti, no comecinho dos anos 2000, seguido pelo belíssimo "O Quarto do Filho" (chorei baldes...), ambos imperdíveis. 


Publicado no blog Torre de Capim Lilás: http://torredecapimlilas.blogspot.com/2020/09/arnaud-fait-son-2eme-film.html.