sábado, 23 de fevereiro de 2013

Depois do casamento



Ontem vi um filme lindíssimo - Efter Brylluppet /After the Wedding /Después de la boda / Depois do casamento, também em exibicáo no Brasil. A diretora, Susanne Bier, realiza um boníssimo trabalho de roteiro e direção. É desses filmes bem construídos, de fotografia perfeita e elenco primoroso, e foi indicado ao Oscar 2007 como Melhor filme estrangeiro.

Para os amantes da sétima arte, torna-se clara a vinculação da diretora e sua obra ao Dogma 95 movimento idealizado pelo também dinamarquês Lars Von Trier e outros cineastas - já quando se começa a ver o filme. A maneira como conduz sua câmera, com closes tão próximos a rostos e olhos, as temáticas fortes e a tendência a tratar, através do cinema, a realidade interior dos personagens e seres humanos em geral vinculam sua obra a trabalhos como os de seus colegas cineastas dinamarqueses e de outros países que se espalharam no Dogma 95 para criar uma nova linguagem cinematogáfica.

Depois do casamento fala de reencontrar coisas perdidas: sentimentos, lugares, pessoas. Jacob, um quase eremita que vive na India (esse lugar tão emblemático quando o tema são as buscas de qualquer tipo, e também um lugar perfeito para perder-se), volta a seu país, Dinamarca, tentando conseguir fundos para apoiar o orfanato que administra. O possível doador é um milionário que lhe colocará frente a seu passado: Jorgen é o marido de Helene, antiga namorada com quem Jacob teve uma filha, Anna. A história começa a ganhar intensidade quando Jacob coloca-se a par dos fatos e descobre que Anna é sua filha, e isso se dá da maneira mais dramática, durante a festa de casamento da jovem (aqui se estabelecem vínculos com filmes como Festa de família, de Thomas Vinterberg - grande realizador do Dogma 95 - e de Após o tremor, de Stina Werenfels, nos quais algumas verdades são descortinadas durante festas de família e/ou outras reuniões íntimas).

Há algumas características já comuns a realizações dinamarquesas, como o gosto por temas intimistas, tais como as relações em família, as dificuldades para demonstrar afeto, o medo da morte, a ganância e o apreço pelo dinheiro e pelo poder. Sem dúvida alguma, essa característica comum corresponde à deixa do Dogma 95 a essa geração de cineastas dos últimos 10 anos. Quanto à forma, muitos aspectos são compartilhados por alguns cineastas que foram citados aqui: Lars Von Trier, Thomas Vinterberg, Stina Werenfels, a própria Susanne Bier e outros vários diretores aficionados a temas intimistas e com uma forma técnica de realizar que privilegia contar a história em vez de mostrar efeitos especiais e recursos tecnológicos.

No filme de Bier, o olhar do espectador caminha das informações visuais que nos oferece uma Bombaim viva e cheia de cores e movimentos, caótica e pululante, para um cenário estático, ordenado, asséptico e frio, ambientado em uma Copenhague que poderia ser considerada a antítese de qualquer cidade indiana. Nessa transposição espacial, se constrói o retorno ao passado de Jacob (Mads Mikkelsen), que encontrará nessa viagem à sua terra natal a chance de reconstruir sua vida pessoal.

Na India, tinha seu trabalho, mas não uma família. A única pessoa que poderia ser considerada como um parente era o pequeno Pramod, um garotinho indiano de quem Jacob se havia feito cargo desde muito pequeno. Ainda assim, Pramod não aceita acompanhá-lo a Copenhague, onde tem que viver para conseguir a verba que manterá aberto o orfanato. Em Copenhague, descobre que não está sozinho no mundo, que tem uma descendência: a jovem Anna; ele mesmo deixa de ser órfão ao deixar Bombaim: renasce como outra pessoa ao ir em busca de apoio material para os meninos do orfanato, ganha uma família ao aceitar a oferta de Jorgen para viver na Dinamarca.

Esse movimento de ir em busca de algo é o que fica de mais forte do filme. Ao realizar o movimento Bombaim/Copenhague, Jacob também realiza um movimento temporal: atravessa vinte anos de sua vida emocional que estavam perdidos/ou esquecidos entre a densa matéria metafísica e concreta que separa as duas cidades, os dois universos semióticos de Índia e Dinamarca. Vai em busca de um dinheiro que o conecta a emoções, histórias, sentimentos e existências, os quais ele desconhecia ou havia perdido.

Na ordenada Copenhague, nasce o pai biológico. E sua tarefa como pai adotivo permanece ativa com a morte de Jorgen, quando ele passa também a apoiar e cuidar os gêmeos Martin e Morten, e assume também o papel de pai de Anna. Reencontra, em meio às perdas inevitáveis, a mulher que perdera há vinte anos, num movimento que envolve o inevitável perder para reencontrar: Helene volta à sua vida em outro cenário, como parte da reconstrução do que havia ficado para trás.

Depois do casamento é um filme bem escrito e bem realizado, que emociona pela sensibilidade ao tratar vida, morte, reencontros, descobertas, afeto, traição, solidariedade, todos os temas clássicos que constroem um bom roteiro. Ele mostra que algumas perdas são inevitáveis no caminho que nos leva a encontrarmos a nós mesmos.

Publicado originalmente em  28 de agosto de 2007. In: http://torredecapimlilas.blogspot.com.br/2007/08/despus-de-la-boda.html. 

Após o tremor



Primeira coisa: é preciso considerar que a intertextualidade está em todas as partes. Falo isso porque o filme que vi no INDIE hoje me fez pensar muito em "Festa de família", de Lars Von Trier e Thomas Vinterberg. Chama-se "Após o tremor" (Nachbeben, 2006), e é um filme suiço, dirigido por Stina Werenfels. Preciso descobrir se essa diretora faz parte ou se interessa pela linguagem do Dogma '95. Provavelmente, sim.

Uma reunião informal para receber o chefe, coloca o banqueiro HP em apuros. No auge da festa, as verdades que estavam sob o tapete vêm à tona. A dinâmica é muito parecida com a de "Festa de família". Um personagem que esbanja auto-confiança e um certo ar arrogante esconde um homem cujos negócios fracassaram, e sua única saída é vender a própria casa. Uma linda casa à beira de um lago. O filme vai dissecando a vida dos ricos: uso de psicotrópicos, traições, farsas, alcoolismo...

A Suiça antisséptica e rica, e a família possuidora de "móveis de design" e bela fachada escondem pessoas vazias, relações truncadas, solilóquios e solidões. O jovem casal é composto por HP (uma sigla, uma cifra?..) e Karin; ele, viciado em calmantes e outras cositas do gênero; ela, alcóolatra. Têm um filho pré-adolescente, Max, demasiado infantil sob o seu capuz vermelho (impossível não pensar em "Chapeuzinho vermelho"... ) e perverso. Muito perverso! Ele filma toda a reunião na casa de HP e Karin, e se diverte com o desenrolar dos fatos. Vê as dores e os podres de cada um. Escuta atrás das portas, ouve gritos, choros e espia, de camarote, os despojos das máscaras... Max realiza o filme dentro do filme. Pura metalinguagem. É interessante ver como o garoto enxerga os acontecimentos que se desenrolam no jardim. Ele acompanha os passos de cada adulto, e ninguém lhe escapa. Parece dotado de uma onipresença que causa incômodo no espectador. Ele está em todos os lugares, exceto no jardim.

O isolamento do garoto é algo instigante. A babá nunca está com ele, e parece ridículo que se requisite uma babá para um pré-adolescente. Max vê na babá dinamarquesa o seu objeto de desejo, e bisbilhota suas coisas, observa-a na sua "toilete"... Ela, reforçando o perfil de desencontro absoluto dos papéis, mantém com o patrão de HP um caso, o que será o detonador da história.

A fotografia é belíssima. A cena final me arrebatou. A câmera focaliza os rostos de cada um, o olhar de cada personagem também é explorado. Os olhares falam do sofrimento que há dentro de cada um, exaustivamente.

Gostei muito de como Werenfels trabalha a sensualidade em seus personagens. O filme tem uma sensualidade inquietante. Não falo de sexualidade, falo de sensualidade. Há uma exuberância que se estende desde a primeira até a última cena. Homens e mulheres são registrados por um olhar que os registra de modo sensual, os corpos são flagrados em seus movimentos naturais, acordam, caminham pela casa, choram e riem de maneira intensa. A cenografia também revela muita sensualidade: móveis de designers famosos, arquitetura que excita os sentidos, uma construção estética que apela para o olhar e para o tato. São os sentidos convocados na construção que essa cineasta faz do seu filme.

Uma última coisa que eu poderia dizer é que o filme fala de solidões. Todos ali estão sós. A mulher traída, o bebê vigiado pela babá eletrônica na sala, o garoto em seu quarto com seus coelhos e seu videogame, a babá em sua obsessão por Phillip, Karim em seu alcoolismo, HP mergulhado em suas dívidas, o estagiário que deseja estudar Design de Interiores mas estuda Economia. Todos estão sozinhos em seus mundos, e não se encontram. Todos estão reunidos na casa, mas fogem uns dos outros. A babá se tranca no quarto; a esposa de Phillip - ainda que grávida de 5 meses - bebe muito; HP consome psicotrópicos; o estagiário usa cocaína no banheiro; Karim se embriaga desde o começo da festa. Phillip e Max são os únicos que parecem ver tudo: o primeiro porque foge da amante ensandecida; o segundo, porque tem o controle da situação, com sua câmera, acompanhando o vaivém das pessoas pela casa e fora dela.

Gostei muito do filme. Devo voltar depois para mais algum comentário que surja.


Publicado originalmente em 29 de agosto de 2006, in: http://torredecapimlilas.blogspot.com.br/2006/08/aps-o-tremor.html